Acordar assim, sufocado, e atribuir esse ardor de alma aos vinte e oito graus matinais de temperatura é hipocrisia. Bem sabes que sufocas por dentro. O tempo não pode ser o culpado de tudo. Se chove, dizes-te de mau humor porque as calças e os sapatos chegaram molhados à porta do escritório, quando se te enruga a testa mesmo enquanto dormes, quente, debaixo dos cobertores. Se sais para a rua, e não consegues respirar, não te desculpes com o calor por teres ignorado ostensivamente, como todos os dias, o homem que te pede sempre dinheiro no mesmo sítio e à mesma hora. E se, por uma vez, parasses? Não te desculpes com o calor, com o cansaço à saída da praia, com o trânsito, quando presenteias a criança com um tabefe por ela ter tropeçado. Se ela cai e se magoa, porque lhe bates? Quem te vê, quase pensa que lhe bates por existir. O tempo não pode ser o culpado de tudo. Já estavas assim antes.
*“O Inominável”, Samuel Beckett
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