Lugares comuns

"Uma noite, porém, a intensidade que ensina entrou no sonho. Viu-se num mosteiro, submisso. Imitava até ao ponto de repetir o gesto de levantar o dedo indicador da mão direita, exactamente como customava fazer o mestre. No sonho, o mestre perguntou - por que levantas o dedo indicador? E ele, depois de repetir o gesto, respondeu: porque quero aprender consigo. O momento que ensina como um professor veio depois. Uma nova pergunta foi feita e no momento em que Elia levantava o indicador repetindo o gesto ritual do mestre, este, com uma lâmina, cortou-o. Logo de seguida, veio a pergunta: tens dores? E foi ao tentar levantar o dedo indicador e ao ver que tal não era possível, pois que este já não existia, que Elia de Mircea percebeu, de modo explicito, que aquele gesto não era seu e, por isso mesmo, não era digno. Acordou, mas com sangue. Olhou para a mão direita e viu que o seu dedo indicador fora mesmo cortado. Sonhos de tanta importância que atravessam a parede. Tornam-se reais, consequentes. Foi o dia da mudança."

Excerto de a história de elia de Mircea, uma das "Histórias Falsas" de Gonçalo M. Tavares (Ed. Campo da Literatura)
Em "A Moral do Vento, Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares" (Ed. Caminho), o autor do ensaio , Pedro Eiras, lembra Freud e a amputação feita castração no plano onírico. Se para Freud a amputação sonhada equivalia sempre a castração, ali onde era dedo dever-se-ia ler pénis. O dedo de Elia de Mircea (assim nomeado naquela história falsa, mascarando o nome verdadeiro do historiador, filósofo e teólogo romeno Mircea Eliade) teria sido cortado para que no seu lugar crescesse um órgão verdadeiro. O mestre será, assim, uma prótese da qual o discipulo, uma vez terminados os ensinamentos, se liberta.
Sobre escrever, e, em particular, sobre escrever poesia, li, algures no infinito virtual sem que tivesse memorizado o sítio, o conselho de um professor aos seus alunos. Aconselhava, peremptório, que se evitassem palavras como amor, tristeza, raiva, dor. No fundo, os lugares comuns. Explicava que a palavra amor, num bom poema, deve ser substituída por uma metáfora capaz e original, que evoque os cinco sentidos e os deixe viajar através das linhas. Viajar através das linhas, apercebo-me enquanto escrevo, terá qualquer coisa de metafórico, mas não lhe reputo capacidade e originalidade. Será difícil, concluía o professor, mesmo para quem trabalhe (com) as palavras há largos anos. Pensar que todos os poemas falam de amor é como pensar que todos os poetas estão mortos porque hoje já ninguém escreve poesia. Mas a poesia não está morta. Queria eu dizer com isto que tal como Elia de Mircea ficou sem o dedo para que pudesse filosofar de forma original, (ou pensar por si), também os poetas, antes de mais, se se querem capazes e originais, devem amputar, pelo menos inicialmente, a palavra amor, aqui feita prótese, e evitar o lugar comum de estarem mortos.

Ruas sem saída